domingo, 18 de setembro de 2011

Mas isto é arte?

Em tempos de Bienal do Mercosul, vale a pena reler o texto do Contardo Calligaris para a Folha de São Paulo:

SÁBADO, DIA 4 DE JUNHO, abre as portas a 54ª Bienal de Arte de Veneza. Gosto do clima cultural antes da abertura (nos jornais, na televisão e nos bares de Castello vingam as polêmicas sobre os curadores, os artistas convidados etc.). Em compensação, na cidade, a abertura é uma chatice: sentados às mesas dos restaurantes mais luxuosos ou plantados na popa das lanchas que servem de táxi, aparecem de repente centenas de personagens que talvez sejam artistas, curadores e intelectuais do mundo inteiro -mas acontece que, para ter cara de artistas, curadores etc., eles se esforçam tanto que parecem ser figurantes pagos por uma agência de turismo local.

Enfim, fico em Veneza até amanhã. E voltarei em julho, quando, passada a primeira semana de glamour, tanto a Bienal quanto as numerosas paralelas estarão abertas e quase desertas -até novembro.

Não sei mais quantas Bienais de Arte de Veneza visitei. Tudo indica que a deste ano será boa, mas, agora, o que me interessa é este fato, que se repete a cada dois anos: nos dias antes de a mostra abrir, a imprensa italiana descobre as primeiras obras que chegam à cidade e sempre pergunta: "Mas, afinal, isto é arte?".

Claro, ninguém consegue responder, nunca. E eu acho ótimo que seja assim.

Corajoso, o crítico Achille Bonito Oliva (no jornal "La Repubblica" de 28 de maio) propôs um catálogo de sugestões ou critérios, que me inspiraram alguns comentários.

1. "É preciso chegar diante da obra desarmados, ou melhor, com um preconceito favorável." A sugestão me fez pensar, paradoxalmente, no excesso de preconceito favorável com o qual, em regra, nós nos aproximamos da arte "clássica". Enquanto entramos numa Bienal perguntando, irônicos, se "aquilo" é arte, entramos nos museus como se fossem santuários. No entanto, há muitas obras dos últimos seis séculos que são formalmente falidas e triviais pelo tema.

Gostaria que, na hora de visitar um museu, a gente pudesse deixar nosso preconceito favorável no vestiário e evitar se extasiar quando não há por quê. No museu da Accademia, na semana passada, uma mãe exasperada tentava incutir respeito (não apreciação: respeito) a um menino de sete anos que achava aquilo tudo muito chato; a cena acontecia diante de uma medíocre crosta do século 17. Não seria mau se nós mesmos aprendêssemos a entrar nos grandes museus (que às vezes são apenas museus grandes) com a irreverência de uma criança que não está a fim de ser entediada.

2. "A arte é forma... Se ela precisa de demasiadas explicações, de legendas, a obra faliu." Aplaudo: gosto de enriquecer minha experiência lendo sobre a de outros diante da mesma obra, mas a obra que PRECISA de um modo de uso é fracassada.

3. "A arte deve pensar o mundo", sugere Bonito Oliva. Concordo, mas sempre parecemos oscilar entre dois estereótipos: o do crítico e o do jornalista.

O estereótipo do crítico prefere ser incompreensível, talvez por medo de simplificar e reduzir.

O estereótipo do jornalista, preocupado com o conforto de seus leitores, resume a obra ao óbvio. Exemplo. Jennifer Allora e Guillermo Calzadilla, artistas norte-americanos, propõem (no pavilhão dos EUA) um tanque de guerra de cabeça para baixo com, em cima, uma esteira sobre a qual correrão (na abertura, suponho) os membros do time de atlética dos EUA.

Já houve jornalistas para decretar que a obra denuncia a guerra e propõe o esporte como alternativa. Caramba! Só para começar: talvez a obra afirme que guerra e esporte são misérias (ou glórias) comparáveis, duas faces da mesma medalha. E que tal se a denúncia dissesse que o horror da guerra não é muito pior do que o domínio exercido sobre nós pela ditadura higienista do corpo em forma?

Bonito Oliva conclui dizendo que "a arte é o domingo da vida", porque representa a suspeita de uma outra beleza, a esperança de um desconcerto. Por isso mesmo, preferiria dizer que a arte é o sábado da vida -na espera de domingos, que sempre decepcionam um pouco.

Enfim, a modernidade (é o que mais gosto nela) é a época da dúvida como valor. Ter uma conduta moral, para nós, significa não parar de se perguntar o que é justo e o que é errado. Da mesma forma, apreciar nossa arte talvez signifique não parar de se perguntar: "Será que isto é arte?".

Noh, Sang-Kyoon

Noh, Sang-Kyoon escolheu seguir seus mitos pessoais como fonte e motor de seu processo criativo. Milhares de lantejoulas recobrem telas e esculturas, a partir de lembranças que vão de um saco de lantejoulas de sua mãe, de figurinos de cantores na televisão e a uma experiência de quase morte na infância, quando quase se afogou. Ele percebeu então que é possível morrer em vão: como ninguém, sem propósito, como um peixe sem escama está condenado a morrer. Mais tarde ele traduziu estas memórias em uma série de trabalhos utilizando lantejoulas, criando uma aparência brilhante de escamas de peixe – as quais são essenciais para a sobrevivência destes.


Na série “Para os Adoradores”, Noh, Sang-Kyoon eleva objetos do cotidiano para o reino da meditação – um ato que é ao mesmo tempo sutil e surpreendente. Uma estátua de Buda perde seu significado como um símbolo majestoso de grande reverência e poderes religiosos e passa a ser uma divindade que é mais humana, engraçada e acessível. Seus budas não vestem roupas de monge, mas sim lantejoulas de cores chamativas.


Como lantejoulas coloridas em camadas e multidirecionadas ele cria telas planas, uma reminiscência à pintura minimalista. Enquanto no início da série “Peixes”, os discos brilhantes trabalhavam para fazer referência ao aspecto de escamas, em suas últimas obras, o conceitual e o espiritual são cada vez mais justapostos com o material e o mundo imaginário. Ao explorar as características da lantejoulas para criar ilusões de ótica, ele revela seu trabalho como uma fantasia e também, paradoxalmente, como parte de como nós reconhecemos o mundo em que vivemos. O que é visto, percebido e acreditado não é mais simplesmente verdade, mas um fenômeno onde o real e o espiritual colidem. E os nossos pressupostos de como o objeto é feito para ser visto, são desafiados. As obras tornam-se altamente subjetivos e a participação do público torna-se parte ativa de suas obras.


Em sua última série “Constelações” começamos a ver os círculos de lantejoulas, algumas pequenas e separadas, outras maiores e a fusão com outras em formas caóticas, em grandes telas. No início parecem ser representações abstratas da vida orgânica ou como células que crescem em todas as direções. Em uma inspeção mais próxima, o espectador começa a perceber que os círculos são semelhantes a constelações. O artista transporta o espectador para o reino dos adoradores de estrelas ao criar estas constelações. Permite ao espectador a busca de uma narrativa pessoal para criar ordem no caos aparente e encontre seu lugar no mundo.


Noh, Sang-Kyoon nasceu em 1958 em Monsan, Coréia. Formou-se Bacharel em Pintura na Universidade Nacional de Seul e, posteriormente, estudou em Nova Iorque, onde obteve seu mestrado em pintura pela Pratt Institute. Em 1999, ele foi selecionado para representar a Coréia na 49ª Bienal de Veneza, onde ganhou a atenção internacional. Seu trabalho tem sido exibido na Coréia, Japão, China, França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. Esta é sua terceira exposição individual na Galeria Bryce Wolkowitz.